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Hernâni Caniço

Médico, Doutorado pela Universidade de Coimbra, Medalha de Mérito da Ordem dos Médicos, Competência em Gestão de Serviços de Saúde, Vereador na Câmara Municipal de Coimbra, Membro da Comissão Política Concelhia e da Comissão Política da Federação Distrital de Coimbra do Partido Socialista.

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Tema: CulturaData de Publicação: 19/07/2024, 16h49
Álvaro Simões, artista plástico, poeta
Foto Rui Carreira
Foto Rui Carreira

Conheci Álvaro Simões após ser fundador e Presidente de uma ONGD e IPSS durante 23 anos, pela qual realizei 43 missões de serviço como voluntário, principalmente em África, Ásia, América Latina e Europa, tendo Álvaro Simões demonstrado que, para ele, a solidariedade não é uma palavra vã.

Sendo essa ONGD, Membro Observador Consultivo da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), sediada em Coimbra, Álvaro Simões ofertou à organização 9 quadros originais, cada um representando um País de Língua Portuguesa e o último precisamente retratando a solidariedade.

Esses quadros de pintura estiveram em Exposição-mostra no Coimbra Shopping e no ISCAC, com a designação “Triângulos do Mar – Caravelas de Solidariedade”, retratam com fidelidade os povos representados, as suas dificuldades e as suas potencialidades, uma verdadeira paleta de cores.

Álvaro Simões sentiu o “cheiro da terra” de África, terra-mãe, exaltou a luta do povo de Timor pela independência, reconheceu o canto e as lágrimas em terra quente derramado pelos voluntários em prol da ajuda ao desenvolvimento e da ajuda humanitária, ajudando a ajudar.

Mas decerto que Álvaro Simões, ao fazer referência na contracapa do seu livro “Convexos” à sua descendência de Salatinas, está a memorizar a situação de desalojados da Alta de Coimbra, em 1943, para dar origem à cidade universitária.

3000 Salatinas foram deslocados para outras zonas da cidade, num processo de mudança violenta, em que cerca de 200 edifícios de 20 quarteirões foram arrasados e os desalojados distribuídos pela então periferia da cidade, posteriormente absorvidas pelo espaço urbano: Bairro da Fonte do Castanheiro, na Arregaça, Bairro Marechal Carmona, actual Norton de Matos, e o Bairro de Celas.

Foi fragmentada uma comunidade estabelecida, destruído o seu sentido de propriedade, a perda de um modo de vida, a sonegação de direitos. Os Salatinas levaram consigo o nome, as tradições e as histórias da Alta para os bairros de realojamento. Álvaro Simões terá decerto muito para contar da sua ascendência.

Compreendo muito bem Álvaro Simões, vitivinicultor. Sou filho de um vitivinicultor, e sei da dureza, da paixão, de outro “cheiro da terra” levantado do chão, que se embrenha nos sentidos, que motiva Álvaro Simões à poesia, como texto provido de sintaxe ideogramática e com disposição espacial e geométrica.

Daqui resulta uma paleta de palavras, neste caso, onde as associações poéticas harmoniosas de palavras, ritmos e imagens, sobre viventes e as situações do meio campestre e as belezas da natureza fluem, numa torrente que não prescinde e exalta o amor.

É uma honra para mim apresentar Álvaro Simões e o livro de poesia ”Convexos”, mas é também um risco de interpretação, coincidente ou não com o autor, concomitante ou não com o leitor, mas de uma profundidade que nos marca, de uma grandeza que nos reduz, de uma literacia que nos atrai.

Convexos” é uma atitude marcada do autor, aberta para o exterior, em que o mundo assume formas desejáveis e indesejadas, mas que não perde os seus valores, as suas expressões envolventes ou rudes, as quais originam discernimento e seleccionam acolhimento.

Cada poema, é um poema. Parece uma redundância, mas nada há de repetitivo em cada poesia, que pode ser uma tonadilha própria de gente do campo, um panegírico laudatório, um cântigo que determina a realidade, ou uma toada abrangente na emoção ou no protesto, há a afirmação do tema, do pensamento, da vontade.

Seria fastidioso perorar sobre a magnificência desta obra, tão abrangente na vida e suas circunstâncias, na sociedade e suas manigâncias, nas emoções e suas consequências, por isso resumirei alguns excertos, deixando ao leitor o exercício da absorção da criatividade do autor e o gosto da leitura sedutora.

Condomínio” retrata o nascimento, as alegrias, as agruras, o sofrimento, o amor, sempre com a força da palavra, como no poema “a palavra pode”: “dói, seguramente que dói, estar perto de quem, sofre e disso dá registo”, mas, no final “as palavras, povoam de esperança, os silêncios áridos, e a escuridão latente”.

O Outro” estipula os seus poemas no horizonte simbólico e onírico da oralidade, em simultâneo com o realismo da palavra, mais uma vez, entre a revolta e o carinho. Em “catarro”, diz “em cada porção de tempo, esgrimes o argumento, pagas custas à liberdade”, e em “coração” diz “um transplante cardiotorácico, não altera um amor, uma paixão, tão pouco altera a razão”.

Ela e eles” é uma ode à liberdade, onde a verdade é mais forte do que as algemas, cruzando a poesia, contestando a elegia e a nostalgia, com o vocábulo não redondo, a mãe “quanto é doce quanto é bom” de Zeca Afonso. De facto, no poema “liberdade”, o autor diz “não algemem as palavras, soltem-nas do mealheiro, não as quero amestradas, às chaves do carcereiro”. Em “adoção”, o autor diz “veja bem, minha mãe, antes seu que da pátria, e depois de ser seu, haverei ser de alguém”.

Em “Epifanias”, centramo-nos nos dias límpidos e noites de breu, e na água que corre debaixo das pontes e da salvação, fonte da vida e da ambição. Em “dias únicos”, lemos “a vida conforma-se, nesta sucessão constante, apenas nos é permitido existir, neste vicioso contexto”, mas em “noite”, percorremos “adormecemos cansados, nas brasas amorrinhadas, aos corpos aconchegados”. No poema “água”, “as árvores não fingem, erguem-se audazes, e cumprem-se...”, e no poema “riacho, a essência de um caudal”, lê-se “aquela vida que corre, no leito da circunstância, e amadurece rompendo, a resistência à mudança”. Não podia ignorar o poema “sorriso”, que é a melhor forma de melhorarmos a nossa aparência, onde se lê “perfumou o chão, com tapetes de hortelã, (...) aquele sorriso nasceu, com fragrâncias de mar (...) faz ponte, dá passaporte (...) querendo ser e o é”.

Em “Sal e Feridas”, no poema “súbditos”, vivemos o protesto “ó água da minha praia, para de beber segredos, mastiga nas tuas ondas, a cobardia dos medos”, e em “Abril da circunstância”, revivemos a noite clara daquela madrugada, por onde uma chaimite se aproximava, e os aperfeiçoamentos não consumados: “apartados das coisas e dos lugares, procuramos nas ruas resgatar o gesto, com que desenharemos fazer brotar, a gota que escorre da persistência, para que se inunda aqui outro futuro”.

Em “Saco Marsupial”, no poema “memória e circunstância”, o autor retrata a meninice com inocência e primor, trazendo-nos a infância com virtude e pudor: “ao domingo na igreja, as meninas ao passar, sorriam para quem corteja fingindo nem estar a olhar”. E, em “Salatinas” marca, de forma indelével, a condição da sua ascendência, estatuto de relevo na cidade e destrato da comunidade salatina: “sei de um velho castanheiro, à ilharga da cidade, que deu tábuas de berço, para embalar o horizonte, e os preparos da foz”.

Em “Textos frutos do chão”, ressalta a dureza e a beleza da vitivinicultura, que eu próprio conheci, como já disse, através do meu pai, produtor agrícola, que deu a sua vida à família e ao seu sustento, através de uma paixão desde o bacelo, à videira, ao podar, ao sulfatar, esladroar e vindimar, cujo ciclo das uvas designaríamos tecnicamente por fases de dormência, brotação, floração, crescimento dos bagos, maturação. Em “almasim”, descreve ”é alma, é alma sim, é das mãos que resgataram, da intimidade das pedras, os cachos de flor mindinha, que o sol apadrinhou”, e em “Podentes” caracteriza a “toalha ecológica da serra, posta em cada madrugada, para o chão acordar, fértil, para desembrulhar na terra, as sementes do carso, e os mimos de Sicó”.

Em “Da Capital do Amor”, que não podia deixar de ser Coimbra, que outros propagandeiam e maltratam, o autor define a tradição e a evolução, desde os primórdios do Mondego sonhador ao futuro que, infelizmente, está na mente nas mãos de quem destrói a floresta de Barcos, em Cernache, ou a serra do Alhastro, em Brasfemes e Souselas. Em “endogamia” “chama o penedo na lapa, faz da ponte um recital, tira a saudade da capa, veste brioso o choupal”, e em “Coimbra no armário” faz-nos lembrar António Aleixo, quando diz “Coimbra, terás mais valor, na hora de abrir armários, desde o pedreiro ao doutor, dá valor aos teus operários”.

Em “Missivas”, a descompressão e a mensagem subliminar ou directa, a importância ao que é importante. Em “as cartas ao avô do pai natal”, o autor assume: “quero de volta as andorinhas, na primavera, um chão amigo do caminhar, peixe no rio e no mar, o pão e a água sem iva, as crianças com o futuro, desipotecado”. E, em “cante” remata “prefiro ficar em pé convosco, andar como num coro alentejano, balançar o corpo encorajado, no cante que nos avança juntos”.

E termina, “Depois de escrito”, em amor, beleza e inquietação, em “despedida” com “dá-me um abraço, a mão ou um grito”...

Eis alguns excertos da obra poética de Álvaro Simões, que tem muito mais do que aqui resumimos, sob a forma de poesia que, segundo Aristóteles, seria o "impulso do espírito humano para criar algo a partir de imaginação e dos sentimentos”.

Rui Guedes, em prefácio a “Florbela Espanca, Poesia Completa” exprimia: “O único prazer a que se pôde permitir foi aquele que só é possível a uma poetisa: “o de sonhar, sonhar muito, olhar muito além para longe de todos os que cantam, os que falam, os que riem!...”

Eduardo Lourenço, em prefácio a “Manuel Alegre, Obra Poética”, enunciava que “Manuel Alegre fez do poema um objecto mítico, o único onde a realidade e a sua ausência se unificam”.

Álvaro Simões, artista plástico, ser poeta, em “Convexos”, construiu o seu espaço, o lugar do mundo onde a linguagem burilada e requintada se conjuga com a simbologia comum, a verve com a terra ambicionada, a poesia com um bálsamo harmonioso, a palavra com o sentido da emoção, os versos e estrofes, as métricas e as rimas com sentimento e razão.

Casa Municipal da Cultura, Coimbra

Apresentação do livro de poesia “Convexos” de Álvaro Simões,

por Hernâni Caniço, 13.07.24

Foto Rui Carreira

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