Conheci Álvaro Simões após ser fundador e Presidente de uma ONGD e IPSS durante 23 anos, pela qual realizei 43 missões de serviço como voluntário, principalmente em África, Ásia, América Latina e Europa, tendo Álvaro Simões demonstrado que, para ele, a solidariedade não é uma palavra vã.
Sendo essa ONGD, Membro Observador Consultivo da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), sediada em Coimbra, Álvaro Simões ofertou à organização 9 quadros originais, cada um representando um País de Língua Portuguesa e o último precisamente retratando a solidariedade.
Esses quadros de pintura estiveram em Exposição-mostra no Coimbra Shopping e no ISCAC, com a designação “Triângulos do Mar – Caravelas de Solidariedade”, retratam com fidelidade os povos representados, as suas dificuldades e as suas potencialidades, uma verdadeira paleta de cores.
Álvaro Simões sentiu o “cheiro da terra” de África, terra-mãe, exaltou a luta do povo de Timor pela independência, reconheceu o canto e as lágrimas em terra quente derramado pelos voluntários em prol da ajuda ao desenvolvimento e da ajuda humanitária, ajudando a ajudar.
Mas decerto que Álvaro Simões, ao fazer referência na contracapa do seu livro “Convexos” à sua descendência de Salatinas, está a memorizar a situação de desalojados da Alta de Coimbra, em 1943, para dar origem à cidade universitária.
3000 Salatinas foram deslocados para outras zonas da cidade, num processo de mudança violenta, em que cerca de 200 edifícios de 20 quarteirões foram arrasados e os desalojados distribuídos pela então periferia da cidade, posteriormente absorvidas pelo espaço urbano: Bairro da Fonte do Castanheiro, na Arregaça, Bairro Marechal Carmona, actual Norton de Matos, e o Bairro de Celas.
Foi fragmentada uma comunidade estabelecida, destruído o seu sentido de propriedade, a perda de um modo de vida, a sonegação de direitos. Os Salatinas levaram consigo o nome, as tradições e as histórias da Alta para os bairros de realojamento. Álvaro Simões terá decerto muito para contar da sua ascendência.
Compreendo muito bem Álvaro Simões, vitivinicultor. Sou filho de um vitivinicultor, e sei da dureza, da paixão, de outro “cheiro da terra” levantado do chão, que se embrenha nos sentidos, que motiva Álvaro Simões à poesia, como texto provido de sintaxe ideogramática e com disposição espacial e geométrica.
Daqui resulta uma paleta de palavras, neste caso, onde as associações poéticas harmoniosas de palavras, ritmos e imagens, sobre viventes e as situações do meio campestre e as belezas da natureza fluem, numa torrente que não prescinde e exalta o amor.
É uma honra para mim apresentar Álvaro Simões e o livro de poesia ”Convexos”, mas é também um risco de interpretação, coincidente ou não com o autor, concomitante ou não com o leitor, mas de uma profundidade que nos marca, de uma grandeza que nos reduz, de uma literacia que nos atrai.
“Convexos” é uma atitude marcada do autor, aberta para o exterior, em que o mundo assume formas desejáveis e indesejadas, mas que não perde os seus valores, as suas expressões envolventes ou rudes, as quais originam discernimento e seleccionam acolhimento.
Cada poema, é um poema. Parece uma redundância, mas nada há de repetitivo em cada poesia, que pode ser uma tonadilha própria de gente do campo, um panegírico laudatório, um cântigo que determina a realidade, ou uma toada abrangente na emoção ou no protesto, há a afirmação do tema, do pensamento, da vontade.
Seria fastidioso perorar sobre a magnificência desta obra, tão abrangente na vida e suas circunstâncias, na sociedade e suas manigâncias, nas emoções e suas consequências, por isso resumirei alguns excertos, deixando ao leitor o exercício da absorção da criatividade do autor e o gosto da leitura sedutora.
“Condomínio” retrata o nascimento, as alegrias, as agruras, o sofrimento, o amor, sempre com a força da palavra, como no poema “a palavra pode”: “dói, seguramente que dói, estar perto de quem, sofre e disso dá registo”, mas, no final “as palavras, povoam de esperança, os silêncios áridos, e a escuridão latente”.
“O Outro” estipula os seus poemas no horizonte simbólico e onírico da oralidade, em simultâneo com o realismo da palavra, mais uma vez, entre a revolta e o carinho. Em “catarro”, diz “em cada porção de tempo, esgrimes o argumento, pagas custas à liberdade”, e em “coração” diz “um transplante cardiotorácico, não altera um amor, uma paixão, tão pouco altera a razão”.
“Ela e eles” é uma ode à liberdade, onde a verdade é mais forte do que as algemas, cruzando a poesia, contestando a elegia e a nostalgia, com o vocábulo não redondo, a mãe “quanto é doce quanto é bom” de Zeca Afonso. De facto, no poema “liberdade”, o autor diz “não algemem as palavras, soltem-nas do mealheiro, não as quero amestradas, às chaves do carcereiro”. Em “adoção”, o autor diz “veja bem, minha mãe, antes seu que da pátria, e depois de ser seu, haverei ser de alguém”.
Em “Epifanias”, centramo-nos nos dias límpidos e noites de breu, e na água que corre debaixo das pontes e da salvação, fonte da vida e da ambição. Em “dias únicos”, lemos “a vida conforma-se, nesta sucessão constante, apenas nos é permitido existir, neste vicioso contexto”, mas em “noite”, percorremos “adormecemos cansados, nas brasas amorrinhadas, aos corpos aconchegados”. No poema “água”, “as árvores não fingem, erguem-se audazes, e cumprem-se...”, e no poema “riacho, a essência de um caudal”, lê-se “aquela vida que corre, no leito da circunstância, e amadurece rompendo, a resistência à mudança”. Não podia ignorar o poema “sorriso”, que é a melhor forma de melhorarmos a nossa aparência, onde se lê “perfumou o chão, com tapetes de hortelã, (...) aquele sorriso nasceu, com fragrâncias de mar (...) faz ponte, dá passaporte (...) querendo ser e o é”.
Em “Sal e Feridas”, no poema “súbditos”, vivemos o protesto “ó água da minha praia, para de beber segredos, mastiga nas tuas ondas, a cobardia dos medos”, e em “Abril da circunstância”, revivemos a noite clara daquela madrugada, por onde uma chaimite se aproximava, e os aperfeiçoamentos não consumados: “apartados das coisas e dos lugares, procuramos nas ruas resgatar o gesto, com que desenharemos fazer brotar, a gota que escorre da persistência, para que se inunda aqui outro futuro”.
Em “Saco Marsupial”, no poema “memória e circunstância”, o autor retrata a meninice com inocência e primor, trazendo-nos a infância com virtude e pudor: “ao domingo na igreja, as meninas ao passar, sorriam para quem corteja fingindo nem estar a olhar”. E, em “Salatinas” marca, de forma indelével, a condição da sua ascendência, estatuto de relevo na cidade e destrato da comunidade salatina: “sei de um velho castanheiro, à ilharga da cidade, que deu tábuas de berço, para embalar o horizonte, e os preparos da foz”.
Em “Textos frutos do chão”, ressalta a dureza e a beleza da vitivinicultura, que eu próprio conheci, como já disse, através do meu pai, produtor agrícola, que deu a sua vida à família e ao seu sustento, através de uma paixão desde o bacelo, à videira, ao podar, ao sulfatar, esladroar e vindimar, cujo ciclo das uvas designaríamos tecnicamente por fases de dormência, brotação, floração, crescimento dos bagos, maturação. Em “almasim”, descreve ”é alma, é alma sim, é das mãos que resgataram, da intimidade das pedras, os cachos de flor mindinha, que o sol apadrinhou”, e em “Podentes” caracteriza a “toalha ecológica da serra, posta em cada madrugada, para o chão acordar, fértil, para desembrulhar na terra, as sementes do carso, e os mimos de Sicó”.
Em “Da Capital do Amor”, que não podia deixar de ser Coimbra, que outros propagandeiam e maltratam, o autor define a tradição e a evolução, desde os primórdios do Mondego sonhador ao futuro que, infelizmente, está na mente nas mãos de quem destrói a floresta de Barcos, em Cernache, ou a serra do Alhastro, em Brasfemes e Souselas. Em “endogamia” “chama o penedo na lapa, faz da ponte um recital, tira a saudade da capa, veste brioso o choupal”, e em “Coimbra no armário” faz-nos lembrar António Aleixo, quando diz “Coimbra, terás mais valor, na hora de abrir armários, desde o pedreiro ao doutor, dá valor aos teus operários”.
Em “Missivas”, a descompressão e a mensagem subliminar ou directa, a importância ao que é importante. Em “as cartas ao avô do pai natal”, o autor assume: “quero de volta as andorinhas, na primavera, um chão amigo do caminhar, peixe no rio e no mar, o pão e a água sem iva, as crianças com o futuro, desipotecado”. E, em “cante” remata “prefiro ficar em pé convosco, andar como num coro alentejano, balançar o corpo encorajado, no cante que nos avança juntos”.
E termina, “Depois de escrito”, em amor, beleza e inquietação, em “despedida” com “dá-me um abraço, a mão ou um grito”...
Eis alguns excertos da obra poética de Álvaro Simões, que tem muito mais do que aqui resumimos, sob a forma de poesia que, segundo Aristóteles, seria o "impulso do espírito humano para criar algo a partir de imaginação e dos sentimentos”.
Rui Guedes, em prefácio a “Florbela Espanca, Poesia Completa” exprimia: “O único prazer a que se pôde permitir foi aquele que só é possível a uma poetisa: “o de sonhar, sonhar muito, olhar muito além para longe de todos os que cantam, os que falam, os que riem!...”
Eduardo Lourenço, em prefácio a “Manuel Alegre, Obra Poética”, enunciava que “Manuel Alegre fez do poema um objecto mítico, o único onde a realidade e a sua ausência se unificam”.
Álvaro Simões, artista plástico, ser poeta, em “Convexos”, construiu o seu espaço, o lugar do mundo onde a linguagem burilada e requintada se conjuga com a simbologia comum, a verve com a terra ambicionada, a poesia com um bálsamo harmonioso, a palavra com o sentido da emoção, os versos e estrofes, as métricas e as rimas com sentimento e razão.
Casa Municipal da Cultura, Coimbra
Apresentação do livro de poesia “Convexos” de Álvaro Simões,
por Hernâni Caniço, 13.07.24
Foto Rui Carreira