A mulher tem mais tendência a criar inseguranças com o seu corpo, o que acaba, às vezes, por destruir autoestimas, abalar a confiança e a atitude que se construiu ao longo de anos. Algo que contribui bastante para este fenómeno são os estereótipos de beleza feminina, que ao longo dos tempos foram construídos pela sociedade, que são incutidos, por vezes "á força", desde miúdas, e a "barbie" é um bom exemplo desses estereótipos, alta, magra, loira, com corpo de quem vai ao ginásio durante toda a semana, e sem imperfeições no rosto, sem manchas, sem sardas, borbulhas ou poros.
Estes estereótipos são incutidos na mulher, desde muito jovens, e estão em constante mutação, num dia temos de ser magras e altas, e no outro a seguir temos de ter cintura fina e ancas mais largas. Isto torna-se problemático, quando é na altura da adolescência que esta pressão social tende mais a acontecer, numa altura da vida em que o corpo feminino se encontra em mudança, e o psicológico tende a ceder mais às consequências das inseguranças.
Os concursos de beleza são um bom exemplo, de como os estereótipos são incutidos na nossa sociedade, sem nós darmos por isso. São imensas as adolescentes que participam nestes concursos tradicionais, em que a mulher tem de ser perfeita, dona de casa, ter filhos, defender as causas mais solidárias, e ter discursos pouco inteligentes. Para além de termos de corresponder a um ideal de beleza, também temos de ser incultas.
A tecnologia, e o desenvolvimento das suas ferramentas, têm ajudado, por um lado, na realização de trabalhos fantásticos, mas por outro , tem suscitado dúvidas em relação à essência humana. Um dos exemplos, desta evolução tecnológica, é a inteligência artificial, que nos pode ajudar em determinadas matérias, mas também pode colocar em causa a nossa existência, enquanto seres humanos, de carne e osso. A inteligência artificial tem sido aplicada em diversos campos da vida em sociedade, no trabalho, na música, no cinema, na vida académica, chegando por vezes a substituir os nossos requisitos, enquanto seres humanos.
Tal como chegou a estes campos, chegou também aos concursos de beleza, não para os tornar mais tecnológicos, mas para substituir literalmente uma mulher, por algo desenvolvido num computador. Assim surge o "Miss IA", que se realizou no final de junho, onde estiveram a concorrer mais de 1500 mulheres, geradas por tecnologia, e destas só dez foram selecionadas como finalistas. A organização é da "The World AI Creator Awards", o júri dos Fanvue World AI Creator Awards, apresenta um painel de dois humanos e dois modelos gerados por IA, o prémio do concurso é no valor de 20 mil dólares, o que corresponde a 19 mil euros.
O objetivo do concurso é reconhecer o trabalho dos criadores de IA, o que também é muito importante, mas, muito sinceramente considero que há formas mais éticas e mais interessantes de reconhecer o trabalho de alguém. As mulheres geradas são dotas de personalidade e possuem uma vida de luxo que exibem nas suas redes sociais, principalmente, no feed do instagram, sendo consideradas "influencers", e tal e qual como nos concursos de beleza tradicionais, cada uma delas defende uma causa importante para a humanidade.
Das mais de 1500 participantes, o júri elegeu dez finalistas vindas de diferentes partes do globo. Fui visitar cada perfil de instagram, com o intuito de "espreitar" a vida irreal de cada uma destas modelos. A primeira chama-se Ailya Lou, é brasileira, e no perfil apresenta-se como fotógrafa e atriz, tem mais de 11 mil seguidores, no feed faz posts de viagens, de "outfits", de "skincare", de desfiles de moda, porém o perfil não apresenta destaques, e no dia em que estava a escrever este artigo, a Ailya não tinha storys, secalhar não é assim tão boa "influencer".
A segunda modelo, chega da Roménia, e tem o nome de Aiyana Kerdi, afirma-se como apoiante da causa LGBTQIA + e é DJ. No perfil de instagram diz que é modelo, e tem mais de 6 mil seguidores. A romena já apresenta um perfil mais ousado, as publicações estão quase todas relacionadas com a causa que defende e com o seu trabalho enquanto Dj, e o perfil exibe alguns destaques. O perfil de Aiyana Kerdi pode ser comparado a um perfil de artista musical.
Nesta viagem pelos perfis repletos de fotografias "perfeitas", seguimos até à França, onde visitamos o perfil de Anne Kerdi, influencer ambientalista, com mais de dez mil seguidores, um perfil em que se nota mais a presença da modelo de IA, dá destaque às causas ambientalistas e às parcerias com instituições e associações ambientais. As fotografias do feed são quase todas no meio da natureza. Ainda na França, temos Lalina, influencer, que também dá preferência à partilha das viagens.
Da Turquia chega-nos a modelo Seren Ay, com 25 mil seguidores, influencer nata, mostra as suas viagens, dá dicas gastronómicas, e mostra produtos que, supostamente, recebe. Ainda da Turquia, surge Asena Ilik, que se afirma apenas como modelo, tem mais de 29 mil seguidores, pelo que aparenta o perfil, é uma modelo bastante conhecida em vários pontos do mundo, apresentando fotografias com diferentes personalidades.
Do outro lado do mundo, especificamente na Índia, surge Zara Shatavari, um estereótipo da mulher indiana, esta modelo é também influencer, tem mais de 16 mil seguidores. A indiana partilha nos seus destaques as entrevistas, que nunca aconteceram no mundo real, com diversos meios de comunicação, que muitos deles também não devem existir. Como qualquer influencer, partilha com os seus seguidores fotografias relacionadas com viagens, parcerias com marcas, e quase em todas as fotografias se nota o artificialismo.
De Bangladesh para a lista de padrões de beleza surreais, chega Eliza Khan, defensora dos direitos humanos, um pouco irónico, que se afirma como viajante e filósofa. Esta concorrente tem mais de 13 mil seguidores, e ao viajarmos pelo seu perfil encontramos diferentes trends, desafios, pode até dizer-se que a modelo poderá ter uma maior expressão no TikTok.
De Bangladesh para Marrocos, onde conhecemos Kenza Layli, uma influencer com mais de 200 mil seguidores, provavelmente a que tem mais. No feed destaca várias áreas sociais, e aquilo que ela executa em cada uma delas, apoia diferentes causas, e partilha muito a sua cultura.
Finalmente, de Portugal, participa Olívia C, a influencer deste concurso que viaja mais, tanto dentro do próprio país, como para outros, por isso o conteúdo principal de Olívia são as viagens. O perfil "oliviaislivinghigh" tem mais de 13 mil seguidores, e é também onde partilha as suas experiências nos diferentes países, dá até a sensação que é uma pessoa que viaja todos os dias.
No dia 11 de julho ficou conhecido o pódio do concurso, em terceiro lugar ficou a portuguesa Olívia C, na segunda posição a francesa ambientalista Lalina e em primeiro lugar, com o maior número de seguidores, Kenza Layli, de Marrocos. Kenza Laily também teve direito a discurso, e afirmou que estava "incrivelmente grata por esta oportunidade de representar os criadores de IA e de defender apaixonadamente o impacto positivo da Inteligência Artificial. Ganhar o prémio Miss IA motiva-a ainda mais a continuar o seu trabalho de promoção da tecnologia de IA.", ou seja, o prémio suspostamente é para quem cria o avatar, mas quem discursa é a criação e não o criador, logo aqui está algo incorreto, era como os filmes receberem óscares e quem fosse agradecer o prémio fossem as personagens.
Existem imensas caraterísticas em comum nestes avatares para além do número de seguidores, e da sua profissão no digital. Todas estas modelos apresentam o perfil de um padrão de beleza inatíngivel por qualquer mulher no mundo real, todas são magras, altas, têm a pele sem uma única borbulha ou mancha, não existe celulite ou estrias, têm todas olhos com cores diferentes do comum, cabelos perfeitos. Vamos ser sinceros, ninguém é assim na realidade, compreendo que seja um concurso de inteligência artificial, e que esta ferramenta é isso mesmo, a artificialidade, mas tendo em conta a sociedade em que nos inserimos não me parece que isto seja ético.
Tendo em conta, que a maioria das pessoas que navegam na internet, e ficam mais tempo na internet, são adolescentes, este tipo de disseminação fácil e rápida, vai ter um maior impacto na vida destes jovens. Sabemos que hoje em dia, os jovens seguem muitos influencers, e tentam, de alguma forma inspirar-se nestes modelos. O facto de existirem perfis de avatares, que não são reais, e com influência de um ser humano, pode fazer com que os jovens ambicionem um estilo de vida que é, praticamente, impraticável, e que se sabe de antemão que nunca se vai atingir, isto pode gerar frustração e levar a casos mais problemáticos.
No caso da mulher, a criação destes padrões de beleza utópicos, porque se sabe que ninguém real é assim, vai suscitar, principalmente na adolescência, dúvidas acerca da própria imagem. Porque é uma fase da vida em que estamos a construir o nosso corpo, e é quando descobrimos também as nossas referências, e quando comparamos mais a nossa imagem à dos outros. Neste caso, e com a disseminação rápida destes avatares nas redes sociais, só vai alimentar a que adolescentes quando crescerem recorram a modificações estéticas, quando o que se deveria transmitir nestes concursos seria o facto de não ter que existir "o padrão de beleza", mas sim vários e cada pessoa tem a sua própria beleza.
Entende-se que este tipo de concursos sirva para premiar e valorizar o trabalho de designers de inteligência artificial, porém seria necessário rever as políticas por trás deste tipo de concursos e rever certas questões que estão na ordem do dia na sociedade em que estamos. As adolescentes desta geração tendem cada vez mais cedo, querer atingir a maioridade, exemplo disso é a utilização precoce de produtos cosméticos indicados para mulheres de mais de 30 anos, mas que estas adolescentes utilizam, porque sentem a necessidade de ser perfeitas, e continuarem perfeitas até aos 60 anos. Ora este tipo de concursos só vem agravar estes comportamentos. Ao criar-se um padrão de Beleza tão perfeito, e que é quase utópico, vai fazer com que estas adolescentes queiram sempre, e cada vez mais, atingir o inatíngivel, através da utilização de cosméticos que não contribuem, positivamente para a saúde da pele jovem.
Tanto se criticou a escolha da miss Portugal, pela sua orientação sexual, mas um concurso em que a imagem feminina é estereotipada num padrão ideal de Beleza, que é ele próprio utópico e não revela diversidade, passa-nos completamente ao lado, e aceitamos como se fosse algo natural. Em que raio de sociedade é que vivemos em que a orientação sexual de alguém intriga mais do que algo que destrói a autoestima de uma pessoa com a criação de Belezas Utópicas.