Este texto contém spoilers.
“A literatura deve ser o machado que quebra o mar gelado dentro de nós.”— Franz Kafka
Kafka não explica. Kafka desconcerta — ou concerta. Depende de cada um de nós.
Há muitos anos que sentia curiosidade em ler A Metamorfose. O tempo foi passando. Duas semanas depois de ter estado agarrada a um livro com quase 600 páginas, senti que precisava de algo mais pequeno. Mas a verdade é que nem sempre “ser pequeno” significa ser leve. Nem rápido. Nem fácil.
A Metamorfose não é um livro que se lê — é um livro que se sente, mesmo quando não se compreende por inteiro. Talvez seja isso que o torna tão perturbador: a sensação de que há algo profundamente verdadeiro escondido em cada linha, mesmo quando nos escapa.
Kafka não nos dá respostas. Dá-nos um espelho, com cortes nos cantos e um reflexo distorcido que, estranhamente, podemos ou não reconhecer. A cada página, a cada parágrafo, a cada frase, procuramos respostas para o que Kafka quererá, de facto, dizer. Mas talvez a resposta não exista. Ou talvez não seja única. Porque A Metamorfose não é sobre a transformação em si, mas sobre tudo o que se revela quando alguém já não é aquilo que os outros esperavam que fosse. Quando, na verdade, já não é útil para os outros. Quando já não corresponde ao que esperam de si.
É então que a máscara cai. Que o amor revela as suas condições. Que a paciência mostra os seus limites. E que a aceitação, tantas vezes proclamada, dá lugar à rejeição subtil ou escancarada. A metamorfose de Gregor é grotesca, sim. Mas mais grotesca ainda é a reação dos que o rodeiam. Porque não é a criatura que assusta, é o abandono.
Kafka mostra-nos, com uma frieza cirúrgica, aquilo que muitos preferem não ver: que o afeto, a pertença, o lugar que ocupamos, estão muitas vezes presos a uma lógica de utilidade. Quando já não servimos, deixamos de ser vistos. E quando deixamos de ser vistos, deixamos, aos poucos, de existir.
Talvez seja essa a verdadeira metamorfose: a forma como nos tornamos invisíveis quando já não correspondemos. A forma como o silêncio se instala onde antes havia “barulho”. A forma como o quarto se fecha. E nós, mesmo estando ainda ali, deixamos de contar.
De um dia para o outro, Gregor Samsa — o protagonista — transforma-se num inseto. Nunca percebemos se é uma barata ou um escaravelho. Não há razão, nem castigo, nem redenção. Apenas o absurdo. E é nesse absurdo que nos reconhecemos. Porque, no fundo, todos tememos o mesmo: deixar de ser úteis. Tornarmo-nos invisíveis. Deixar de justificar a nossa presença. E, como Gregor, acordar um dia e perceber que o amor, o cuidado ou o valor que julgávamos ter eram, afinal, imensamente frágeis e condicionados.
Kafka não precisa de muitas páginas para nos atirar contra o espelho. Para nos fazer sentir pequenos. Para nos fazer duvidar. A questão não é apenas o que acontece a Gregor, mas o que acontece àqueles que o rodeiam quando ele já não pode “produzir”. A frieza. O desconforto. A vergonha. A pressa em esconder o que já não encaixa. O silêncio incómodo que se instala quando a presença de alguém já não se traduz em proveito.
É aí que o livro nos incomoda. Porque talvez não estejamos assim tão longe dessa lógica. Quantas vezes a utilidade não é o critério silencioso com que medimos o outro? Quantas relações resistem quando a força falha, quando a doença aparece, quando o desempenho já não corresponde às expectativas? Gregor deixa de ser visto como filho, irmão, trabalhador. Passa a ser apenas um incómodo. Uma coisa. Uma presença embaraçosa a ser afastada.
E se a verdadeira metamorfose não for a de Gregor? Mas a dos que o deixaram de amar quando ele já não servia?
Talvez seja essa a maior provocação de Kafka. Porque, no fundo, a “transformação” não é a desumanização de Gregor mas sim o desvelar da humanidade precária dos outros. É o retrato frio do que somos quando deixamos de ver o outro como fim e passamos a vê-lo apenas como meio.
E isso… É o que mais assusta!