A jornalista e escritora norte-americana Anne Applebaum lembrou, esta sexta-feira, no primeiro dia das mesas de autores do FÓLIO, que a Rússia já perdeu muitas guerras, pelo que é importante abandonar a ideia de que a Ucrânia não pode vencer o conflito, defendendo o seu território. A afirmação foi feita no FÓLIO – Festival Literário Internacional de Óbidos, durante uma conversa com a docente, autora e analista de política internacional Raquel Vaz-Pinto, sobre o tema “Medo”, moderada pelo jornalista Germano Almeida.
Após ter estado na Ucrânia há poucas semanas, Anne Applebaum garantiu que os ucranianos não pensam que vão ser derrotados. “Eles sabem o tipo de regime que iam enfrentar, e que não podem deixar de combater, porque iam morrer apenas de forma diferente”, revelou. Apesar de os europeu apoiarem financeiramente o país liderado por Zelensky, afirmou desconhecer se irão manter o tabu em relação ao envio de tropas para a Ucrânia.
“Vai surgir um momento em que as pessoas em Moscovo vão perguntar: porque é que estamos a fazer isto? Para quê?”, afirmou a autora de “Gulag: Uma História”, premiado com um Prémio Pulitzer, a propósito do fim da guerra. “Nas últimas semanas, houve muitos suicídios estranhos de pessoas que questionaram o regime. Quando é que o custo vai ser tão alto que Putin vai parar?”, interrogou. “Os ucranianos acharam que se morressem russos suficientes iam parar de lutar, mas depois perceberam que só se preocupam com dinheiro.”
E se Anne Applebaum defendeu que os russos combatem para recriar o seu império e porque têm medo de Putin, Raquel Vaz-Pinto acrescentou que o líder russo, tal como a China, quer uma Europa dividida, sem a vantagem da escala, e que os EUA não sejam vistos como aliados. “O Kremlin financiou a direita e a esquerda radical em toda a Europa, para introduzir ceticismo em relação à Europa e à NATO”, denunciou. “Os russos estão a testar os europeus com drones e com Migs [caças], para causar medo, e as elites dos países pensarem duas vezes se querem ajudar a Ucrânia.”
À pergunta por que motivo a sociedade norte-americana está polarizada, Anne Applebaum respondeu que, nas últimas décadas, as ligações entre as pessoas da comunidade, a nível local, que “praticavam a democracia porque trabalhavam umas com as outras”, começou a perder-se. “As organizações comunitárias desapareceram, e têm sido substituídas pelas relações na internet com as pessoas que concordam connosco”, referiu.

“Vivemos um tempo de constante mudança, e esta é a explicação para os norte-americanos se odiaram e terem medo uns dos outros”, garantiu a jornalista e escritora. “Mas as pessoas não se limitam a ter opiniões diferentes, mas informações sobre factos diferentes, o que torna muito difícil chegar a uma conclusão”, observou. “A existência destas divisões criou um medo genuíno. As pessoas têm medo do que possa acontecer.”
Apesar do cenário desanimador, Raquel Vaz-Pinto considerou que as pessoas ainda têm a capacidade de tirar lições da história do século XX, pelo que não podem pensar que os seus problemas são os piores do mundo. “Roosevelt [presidente norte-americano] dizia que não devemos ceder o medo. E hoje temos uma das fontes do medo em alguns partidos, que têm em comum a visão das mulheres como cidadãs de segunda classe”, denunciou. “A maioria de nós não está disponível a retroceder.”
“Há uma tendência para sermos fatalistas em relação ao futuro, e até ao presente. Uma forma de combater isso é olhar para outras gerações que tiveram de lidar com desafios enormes, como a I ou a II Guerras Mundiais”, aconselhou a especialista em assuntos internacionais. “Precisamos de ler mais e de aprender mais com a nossa História. Tivemos uma ditadura 50 anos”, frisou. “Mesmo nos tempos mais sombrios, as coisas podem mudar. Quem imaginaria que o muro de Berlim ia cair, ou a União Soviética desintegrar-se? Temos de deixar de ter medo, de defender e de lutar pelos nossos direitos.”
A meio da tarde, na abertura do FÓLIO Autores, a escritora finlandesa IIida Turpeinen manifestou preocupação com o facto de os populistas contestarem a ciência, algo que nunca aconteceu no país, levando a que a percentagem de 95% da população que não a punha em causa esteja a diminuir. “As questões ambientais não são discutidas, e as catástrofes estão a acontecer”, denunciou, durante uma conversa com a autora sul-coreana Cho Nam-joo, sobre o tema “Existência”, moderada pela jornalista Luciana Leiderfab, que decorreu no FÓLIO – Festival Literário Internacional de Óbidos.
Iida Turpeinen lamentou que o discurso científico tenha entrado em descrédito. “É perigoso quando começamos a fazer política a partir do medo”, afirmou. “Perdemos quase 400 seres únicos. Como podemos ajudar, se não sabemos que isso está a acontecer?”, questionou. “A recordação é muito importante. Falamos nas guerras para que não voltem a acontecer, mas se não nos apercebemos o que está a acontecer a outras espécies, como é que nos podemos lembrar delas?”

Convicta de que contribuiu para o “despertar deste torpor”, com a publicação de “A Existência da Vida”, a autora contou que o livro foi escrito após ter encontrado um grande esqueleto de um animal que não conhecia, em 2016, no Museu Finlandês de História Natural, em Helsínquia. “Li que era uma vaca-marinha-de-Steller, de que só havia dois esqueletos, e fui direta para a biblioteca pesquisar”, recorda. “Fui orientada pela incapacidade de entender a nossa relação com a natureza, que sempre me inquietou.”
A explicação para as pessoas agirem como se não soubessem que “a natureza tem limites e é vulnerável” foi encontrada durante a procura de informação sobre a vaca-marinha. “Comecei a ler livros do século XVIII, e a forma com descrevem a natureza é muito estranha. Depois, percebi que era por não terem ideia que a extinção era possível”, justificou. Na época, a criação do mundo era atribuída a Deus, e a ideia de interferir na natureza era uma “blasfémia”.
“De repente, o mundo tornou-se mais fácil de compreender. Tinha de mergulhar na história e ver como chegámos aqui”, explicou Iida Turpeinen. “As pessoas tentaram fazer o que sabiam melhor com os conhecimentos que tinham”, acrescentou. O que não imaginava é que quando o livro foi publicado na Finlândia, as pessoas quisessem ir ao museu tocar no esqueleto da vaca-marinha, que sempre esteve à vista de todos, pelo que tiveram de colocar uma barreira à volta. “Acabei por pôr em risco o esqueleto”, confessou.
A autora finlandesa disse ainda que quando decidiu escrever um romance sobre história da ciência, leu muitos livros sobre o tema, e sentiu-se “incomodada por parecer que as mulheres não existem”. Decidiu, por isso, que metade das personagens seria do sexo feminino. “Gosto de trabalhar com arquivos e de pesquisar bastante, e acabei por encontrar mulheres muito importantes. Na ciência, estão por todo o lado. Mesmo que não fossem aceites nos séculos XVIII e XIX, existiam.”
Cho Nam-joo, romancista sul-coreana que participou na conversa, referiu que a personagem principal de “Kim Jiyoung, nascida em 1982” é uma mulher comum, com a qual se pode criar empatia. “Queria contar a história sem ter uma atitude condescendente. As mulheres na Coreia são trabalhadoras e saudáveis, mas, por vezes, estão desesperadas. Muitas vezes, estas personagens são retratadas como figuras distorcidas”, afirmou.
Baseado na sua experiência como mulher que deixou o emprego e se tornou dona de casa depois de ser mãe, o terceiro livro de Cho Nam-joo retrata os impactos da desigualdade de género, que explicou decorrerem de problemas provocados pela estagnação económica do país. “As pessoas, no passado, não prestavam muita atenção às mulheres”, admitiu. “O movimento metoo [movimento feminista global de denúncia de assédio sexual] foi muito importante”, assegurou.
Em 2019, o best seller foi adaptado ao cinema pelo realizador coreano Kim Do Young.
“Na Coreia, há um crítico de cinema que diz que devemos ter um plano para a nossa vida diária, mas não para toda a nossa vida. Nem sempre as coisas acontecem, e é melhor deixar as coisas fluir, tomar a melhor decisão e viver da melhor forma”, contou Cho Nam-joo. Teoria que Iida Turpeinen contrapôs, invocando um sociólogo, que defende que o futuro não é algo que acontece, mas é construído. “É urgente que continuemos a imaginar o mundo em que gostaríamos de viver, haver mais utopia, e entusiasmo de podermos mudar as coisas, porque vamos ter um futuro muito sombrio.”