Hoje é dia 23 de abril de 2025, Dia Mundial do Livro.
Falta um minuto para as nove da manhã. Aproximo-me da grande porta de vidro e madeira velha que separa a livraria do resto do mundo. Rodo a chave na fechadura e deslizo a porta, abrindo-a com algum esforço. É domingo e o sol da primavera de abril deixa-me a acreditar que será um dia bonito, especialmente a trabalhar na livraria.
No entanto, estive à beira de ver a literatura a cair num grande e profundo abismo.
Enquanto arrumava alguns livros nas prateleiras certas, minuciosamente organizadas por ordem alfabética de autor no devido género literário, entram duas clientes. Mãe e filha, era claro pelas semelhanças físicas.
"Bom dia! Bem-vindas! Estou ao dispor se precisarem de mim" – disse, sorrindo.
Retribuíram o cumprimento. A mãe deixou folhear o novo e, mesmo o último, livro do Gabriel Garcia Márquez, "Vemo-nos em Agosto", que estava com um grande destaque, como não seria de estranhar. A jovem, no entanto, aproximou-se de mim devagarinho.
"Desculpa, onde estão 'Os Maias'?" – perguntou-me, com olhos que não sei se seriam de sono ou de um aborrecimento incurável.
Fui à procura das três edições que a livraria tinha. Entretanto, perguntava-me em silêncio sobre como poderia entusiasmar aquela adolescente. Sentia que era a minha missão.
Mirei-a. Estava agarrada ao telemóvel, os seus dedos fluíam no ecrã com a delicadeza de um pianista que se lança numa sinfonia triste. Na entrada, a mãe continuava agarrada ao Nobel e parecia-me que tudo à sua volta tinha desaparecido.
"Aqui estão! Três editoras diferentes, qual chama mais a sua atenção?" – perguntei, na esperança de conseguir alguma resposta.
A jovem arregalou os olhos como se eu a tivesse colocado à frente de algo sobrenatural. Ela responde-me numa só respiração:
"Ainda é maior do que eu pensava!"
Nesse instante, engoli em seco. Tentei ainda transmitir algum alívio, qualquer que fosse...
"Vai ver que vai gostar, esta é uma obra fascinante e que precisa de si para viver, acredite."
A mãe, já ao pé da filha, sorriu com aquele comentário, mas deixou-se estar em silêncio, como quem já não tem vontade de dizer mais nada àquele respeito.
Faço a venda e despeço-me:
"Obrigada! Boa leitura!"
A adolescente, olha-me uma última vez e pega no livro como se ele não respirasse. As duas saem da livraria.
Deixei-me estar no balcão, desencantada, com as duas edições d´"Os Maias" viradas para mim. Toquei num, pesou-me na palma da mão. Ouvi-o respirar.
Realmente, o Eça não tem culpa de o terem submetido à leitura obrigatória. Essa expressão é toda ela um grande erro. Por isso, é mais fácil não abrir aquele calhamaço. Que interessa aos jovens saber das histórias da gente do século XIX ou, pior ainda, perceber a transição estranha do Romantismo para o Realismo, esta crítica do homem nua e crua? Terá o meio, a hereditariedade e a educação um papel tão marcante que valha o esforço de entender?
O aluno até pode acabar o 11º ano com uma nota razoável, sem pesos na consciência por não ter aberto o livro. Porém, certamente, ficarão marcas para toda a vida.
Se tiverem sorte (como eu tive), o bom professor de português vai conseguir-se libertar das burocracias e mostrar "Os Maias" com outra luz, abrindo uma porta para a descoberta. No meu tempo, alguns alunos ainda se permitiam entrar por ela.
Mas não pode ser assim. Não deveria ser assim. A obrigação que os jovens têm não é para com a escola, muito menos para com uma nota. A obrigação é para com cada um, com o próprio crescimento. Porque escritores como o Eça e obras como "Os Maias" são armas únicas para o futuro. O nosso futuro. Se ao menos o abrissem, perceberiam que o ser humano não mudou e o Eça capta a sua essência melhor que qualquer rede social. Mas temo que não queiram mais perceber.
A verdade é que a obra é intemporal. Vemos uma elite política oportunista, fechada e desligada do país real. Uma sociedade que quer copiar os modelos internacionais, mas que os percebe mal e nada têm a ver com Portugal. Tudo isto sem mencionar o artista frustrado que é incompreendido pelo público ou o provinciano que procura reconhecimento social ridícula- e desesperadamente. E claro, os jornalistas de escândalo, que vivem da mentira e da calúnia. Tudo isto sem a par da educação, da família, da amizade e do incesto e tudo com um sentimento profundo de identificação com este país sofrido.
Ler tem de ser um prazer em si mesmo. Um ir, com todas as dúvidas e certezas, um libertar de todos os cansaços que nos prendem ao chão. São mundos que carregamos com as mãos, viagens que fazemos em pensamento, emoções que crescem dentro de nós e ficam.
Mas quando nos dizem “têm de ler isto, é obrigatório!”, soa a sentença a qualquer um. Como a frase de uma campanha anti leitura. É tão triste.
Ler tem de partir de nós. E quando parte, finalmente, não se volte atrás!
A leitura expande-nos em todos os sentidos, desde a imaginação até à memória. Vemos o mundo através dos olhos das personagens e tornamo-nos empáticos de tal maneira que chega a doer. Os livros ensinam-nos e tornam-nos riquíssimos no saber, no escrever, no falar. Levam-nos às lágrimas e às gargalhadas sinceras. Aceleram o nosso coração e deixam-nos sem gesto e, no fim, com saudade. A leitura inspira-nos. Liberta-nos. Salva-nos.
Por tudo isto e por tudo aquilo que só a experiência nos ensina, vale a pena abrir "Os Maias".
Quando superada a descrição, já se instalou a curiosidade, o medo do desconhecido desapareceu. Sorrimos. Queremos ir até ao fim. Descobrimos arrebatamentos de loucura que nos tocam no íntimo. Presenciamos uma relação apaixonadamente impossível. Acompanhamos uma amizade intemporal. O senso de humor é contagiante. Rimos das figuras tristes e dos cómicos jantares no Hotel Central. Vemos a decadente sociedade lisboeta e pensamos nos dias de hoje, nos “Euzebiozinhos” e nos “Dâmasos” que nos rodeiam. No final, corremos para apanhar o elétrico também.
Que prazer único e memorável. O livro respira e precisa de nós para viver.
Um mês depois da adolescente ter comprado "Os Maias", voltou a entrar na livraria. Desta vez, vinha sozinha. Reconheci-a e cumprimentei-a. Ela aproximou-se de mim e disse:
"Foi um grande desgosto para o Afonso da Maia..."
Eu sorrio levemente. Afinal, há esperança.